quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Peça




O ulmeiro olha, em redor, num fingimento de não ser, 
de não ver, como quem olha para dentro da raiz. 
No fundo, coisas de quem vai perdendo a folhagem 
agastada, já dourada; coisas de quem vai sopitando. 
Aveiro é, agora, a ilusão da luz das ruas e das janelas. 
A cidade enrosca-se, como se aguardasse, em si, dias 
mais longos e mais quentes, ou uma ideia de calor; 
como se guardasse a maré viva, ainda bem viva. 
Mas, é a chuva que, a pulso, estabelece a ordem, 
ensopando, cuidadosamente, o ar, a terra, os canais. 
E nada disto é novo, nem a delicadeza dos olhos da casa. 


 [miscelânea]



quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Pequena pressa




Aveiro aproxima-se da veemência de um pensamento 
lateral e a ria reluz, figurada, sem resposta imediata 
para o céu de pressa, negrito, sublinhado e aristocrata, 
que é uma membrana de constrangimento. 

Pressa. A pressa da palavra que ultrapassa. 
A prece da palavra que vem atrás, à pressa, 
pela pressa da palavra que atravessa, não atravessa. 
A armadilha da pressa na mensagem que não passa
e a poesia não garante a integridade da informação
de um caminho incerto e que surge em contramão. 


 [miscelânea]



terça-feira, 6 de novembro de 2018

Aniversário


Ao meu pai


A pedra pergunta «lembras-te de mim?» com se dissesse, a gosto, 
a vida, devolvendo o eco da interrogação involuntária do meu rosto; 
e a chuva cai, como é usual precipitar-se: indiferentemente. 
Acendo o teu aniversário. Dizem-me que, aqui, tudo termina 
mas, é aqui que inicia um universo de ternura que me ilumina. 
Olho, sem ver, o tiritar da chama da vela condescendente; 
não vislumbro céus ou infernos, apenas uma ou outra alegria 
e cenas dispersas, tingidas de bruma e de pó consistente 
com a exactidão que a memória tenta garantir às histórias e a fantasia. 


 [miscelânea]



segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Choque frontal




Olho, outra vez, e já não estás. Ficou como que uma teia 
de névoa: o nosso tempo não se encontra; o momento 
era o beijo e o abraço, imaginários; tu querias tudo 
e tudo era no exacto instante do tudo que eu não podia 
porque, eu trazia a realidade da distância colada ao corpo 
e, pior do que trazer o verão no teu inverno e o inverno 
no teu verão, eu trazia o outono na tua primavera e as flores 
da minha primavera não rematavam o teu rigoroso outono; 
o meu futuro era um sítio diferente, encontrava-me em ti, 
mas perdia-me do teu; levantei muros e pontes inacessíveis, 
quando levavas o vento e a intenção de um horizonte que trazias, 
para lhes repararmos as linhas que não existiam, nem podiam 
existir; eu cruzei e construí discursos, cada vez mais, formais 
e, no enredo de todos os fios de pensamento, a bateria ficou 
fraca. Olho, outra vez, e já não estás, de novo: choque frontal. 


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domingo, 4 de novembro de 2018

Leve




A luz ténue vibra com a metáfora da azáfama dos sons dos pássaros. 
Repouso Mendelssohn, o dia pede Vivaldi, mas acordo o Chopin, 
que acorre, com a refinação do piano, aos múltiplos cantos da casa 
e à alegoria de uma hipotética presunção que apascenta nuvens. 
Um «bom sentimento», como um «bom proveito», ou mesmo 
um «bom apetite» e o tecto cada vez mais longe e menos branco. 
Não sei como será a chuva e o frio que me esperam na rua, 
ou como será a voz do vento de hoje e quantos quotidianos trará. 
Os dias começam sem o acaso de um prefácio, mas com a possibilidade 
de um resumo meteorológico impreciso e de um desejo de bom dia: 
Tem um dia leve e feliz! 


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sábado, 3 de novembro de 2018

Circular




Os flamingos vivem no seu instante perpétuo, um 
equilíbrio irrepreensível que ampara o céu e segura 
a água onde nascem palavras que cheiram a mar. 
Digo, em sussurro, para mim, como quem acarinha, 
como quem acredita: estou bem, acontece poesia. 
Os meus nomes correm nas costas do vento que sei 
da ria vagarosa e que nasce em cada ser que a vê: 
tão fácil, tão pura, tão frágil, tão interior e palpável, 
onde Aveiro se aninha para que a possam amar. 
Mas, não desta forma selvagem, num bloco de betão, 
onde a ferida fala e a convalescença diz o último olhar: 
vou ficar bem, na espessura das sílabas de um sorriso 
de espécie vertical e permanente, da família subtil, 
um brilho que se sente e senta bem dentro e verde. 


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sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Em movimento




Respiro o novembro preciso que o chão de Aveiro exala. 
Aparentemente, todos querem ver coisas, ver-me coisas; 
coisas, todos querem dizer-me coisas, que não respiram. 
Eu escrevo coisas, coisas que se transformam em coisas. 
Escrevo, no estendal, como quem estende a tarde, 
para que ele não perca, já com a sua figura imprecisa, 
com linhas titubeantes, visíveis, apenas, para manter 
a ilusão, como que um certo conforto de aparência. 
E são, agora, as cordas que conduzem as palavras 
às coisas escondidas, ou que já não se podem ver, 
e é o que não se pode ver que me define, que me definha. 


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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A figura




Assisti à chegada da noite com as suas coisas de inverno, 
ainda em outubro, ainda a tempo de um gesto perfeito. 
Mas, o mundo não pára, o trabalho não avança, 
nem mesmo a poesia melhora, só porque chega, 
abruptamente, a sua forma precisa; a sua urgência 
caucionada; o seu poder animal: tarde, já noite. 
  
Eu não quero esperar mais; contar mais; 
sentar-me na sensualidade das nuvens de Aveiro; 
aquecer no esquecimento; subir ou descer, ainda. 
Não quero ser a vez, a palavra, a tinta ou o papel; 
nem a superfície, ou a matéria, para os dedos do frio 
que se propaga na amálgama de todo este espaço, 
que sabe dizer o silêncio que eu espelho 
e onde ganho a paz, a força da paz, a fome da paz. 


 [miscelânea]




quinta-feira, 11 de outubro de 2018

[Substância]




Sem olhar, sacudi-o, não sei que bicho me mordeu. 
É como que uma saída clássica e simples, um fio 
de esquecimento que nos prende ao algoritmo da vida. 
Depois, caí da nuvem, sem saber porquê, e levanto, agora, 
o braço, de veias acesas. Peço a vez para escrever silêncios 
mais compreensíveis, bem se vê, em verde Portalegre, 
extenso, vestidos de perspectiva ternamente arrefecida. 
Não há, pois, nunca houve, por aqui, ponto de vista, 
passadiços de amor de estação e, como se começasse, 
despeço-me do Verão, como se adiasse a desconstrução 
do tempo e temesse o menear ou a amotinação de sombras 
antigas. Um penúltimo e um último olhar memorizam a cidade: 
um acto de alinhar os volumes, de organizar e limpar a luz, 
de ordenhar as cores, de apascentar a vontade… 
antes de atravessar o momento que renasce à flor da terra. 


 [sobrevoo]



segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Degradê





Passeio-me, por dentro. Esqueço a dureza da terra, a sofreguidão 
esclarecida dos ventos e a presença irresoluta. Bom dia, futuro! 
Vinte e nove graus de poesia no céu liso e prometido. 
Nele se passeiam turistas, que pescam qualquer coisa em mim 
e desencadeiam reflexos, talvez, imaginários; talvez, sem sentido. 
E perguntam-me, com respostas – como pode brilhar, que luz tem, 
o que não existe? E eu respondo, com perguntas – como pode não 
ser, como pode não ter?… 

… 

Adia-se a escrita, a ria enxuga nos labirintos do olhar, tão pensamentos. 
Acredito que possa ser compreensiva, a luxúria do silêncio. Não preciso 
de escrever, ou de permanecer nas coxas, ou nas vulvas, das palavras,
para existir na ejaculação do tempo: tão fugaz; tão fora do horizonte; 
tão blasfema aos ouvidos pudicos e nus de deuses orgânicos: os únicos. 


 [sobrevoo]



domingo, 29 de julho de 2018

Distracção




Não interessam as páginas que faltam ao capítulo digital do sobrevoo 
de uma página, também ela, digital; nem o seu próprio esquecimento. 
Estremece-me a forma da possibilidade de ingratidão que vejo em mim 
e alimento linhas que possam remediar os voos que não o puderam ser. 

Entretanto, observo. Vivo o tempo. Não julgo, ou julgo não o fazer. 
Creio que, o senhor, de longas barbas brancas, procura uma qualquer 
coisa nas raparigas de calções muito curtos. Será que, também eu, olho, 
assim, para as coisas da vida? Que longas, ou curtas, coisas se veem 
em mim? O que não estarei eu a ver na pele lisa e bronzeada, que muito 
parece gritar às barbas de uns e aos rostos bem escanhoados de outros? 
Ou terei eu, ou serei eu, essa expressão astuta e predatória de animal 
faminto, que vê nos outros coisas que em mim existem? Haverá alguma 
qualquer espécie de crime, numa qualquer espécie de olhar? 

Não ressuscita, nessas carnes que passam, o corpo que poderia ebulir 
no intervalo dos braços de mãos desarrumadas e ferventes, uma que escreve 
outra que segura o papel; não me resvalam, ou trepidam, nádegas ou seios 
pela mente, não por uma espécie de moralidade, ou de censura, ou de pudor. 
Fecho os olhos. Há um vazio luminoso que se enche de magia, cidade e ria. 
Sou eu, outra vez! 


[sobrevoo]



sábado, 28 de julho de 2018

Modular




Na parte detrás do tempo, vejo a fotografia do rosto abismado 
da vida, o circuito magnético do sorriso e a ciência da verdade. 
Não houve um qualquer sentimento ou outra espécie de prisão: 
não houve tempo, que não me podem oferecer. O tempo, essa 
mesma e sempre nódoa de paciência e impaciência; que requer 
sempre mais de si e de pausa; com o seu próprio doce de insónia, 
que sustenta as suas coisas, com remoinhos de imagens. E o tempo 
de agora, embora possa ser o mesmo, ou outro, ou o tempo contínuo, 
de nada vale ao tempo, de ontem, de hoje e de amanhã. O tempo voa; 
o tempo não sai do lugar; o tempo é uma forma precisa e alcançável, 
e, simultaneamente, a forma do impreciso que teimamos em procurar. 


 [sobrevoo]



sexta-feira, 27 de julho de 2018

Arranjo




Eu luzo para o mundo, como o mundo sol não luz.
Não porque que eu seja uma estrela, mas, porque,
do meu escuro não quero ver o espasmo alheio
de seios intumescidos e desarrumados pelas manobras
de dedos ágeis e manhosos de comiseração.

As minhas partes podem, até, escrever a melancolia
dos silêncios, de igual modo que a dos tumultos,
ou a das sombras da idade, mas tudo isso está ligado
à corrente eléctrica de um sorriso. Apenas ingenuidade.

Talvez traga julho pela mão doce e protectora do meu olhar,
a fonte da paisagem a sair da paisagem, sem nós ou grilhões,
sem denunciar os espinhos cravados no meu íntimo oculto.
Eu, o mesmo que vos vai ouvindo; o mesmo que vos vai dizendo:
Já amei, para toda a vida, mais do que uma vez na mesma vida. 


 [sobrevoo]



quinta-feira, 12 de julho de 2018

Pouso





Vamos! Vamos espreitar e ver o que há de novo por aqui: 
eu, a ria, os pássaros e os jardins, com toda a sua fauna e flora; 
o meu velho e grande amigo ulmeiro a falar de si para si. 

De resto, nada mudou na parte visível das coisas e do verão;
no aéreo, no térreo e no subterrâneo da cidade física ou imaterial; 
na potência do sal, de onde sai o sal de toda esta visão. 

O mesmo excêntrico asfalto de um excesso circulatório, 
ou a mesma poderosa superfície de cubos de pedra imortal, 
convivem sob um mesmo e eterno vento fácil e giratório. 

Pelo horizonte, estende-se o selvagem do azul, sem novidade; 
a cidade avança e passeia-se pelos mesmos turistas de sempre, 
enquanto lhe chove um mesmo poema insone de felicidade. 


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quinta-feira, 31 de maio de 2018

{Visão geral}




Os pássaros perdem as imagens, são uma confusão de sons sem passagens, 
e o dia vai, vai numa fila de contratempo; vai com poesia e sem tempo. 

Suponho, neste abraço rodoviário, que a vida pode ser um sonho; 
pode, um beijo imaginário, ser muito feliz, num fim de tarde de calendário, 
onde crescem paredes numa hera que veste um casaco de primavera. 

Aveiro está no choco, a incubar palavras sensíveis, no ulmeiro. 
Os canais, de céu descomunal, mas legível, acolhem a noite exequível, 
a noite inapelável, que tem mais asas do que voo provável 
e a arte de estar ausente. Eu, não tenho nada; faço parte, paciente. 



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sexta-feira, 2 de março de 2018

Singularidade





Transformada a poesia numa imensa capoeira, 
hoje, sou eu que cisco nas folhas de papel, o meu chão. 
As palavras são, agora, minhocas e não há amanhã. 
Por isso, cisco sem pressa, sem medo, sem confusão
ou, apenas, com a confusão necessária ao movimento 
suficiente para me resgatar do infinito do hábito. Não 
aparenta, quase não se nota, mas, eu voo, enquanto cisco.  
Voo sem voar. Voo o bastante para manter essa ilusão. 
E o meu céu verde, continua verde. Talvez cisque em mim. 


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quinta-feira, 1 de março de 2018

Do meu céu




Nos dias em que as palavras imitam, primorosamente, as galinhas 
e ciscam, minuciosamente e com grande afã, as folhas de papel, 
a vida escorre-me mais rápida pelos poros, no meu céu, verde. 
Um céu verde em lume brando, a dizer os contornos de corpos, 
de cujos olhos nascem sóis ardentes, que cegam o arame farpado 
das razões e esgotam os sentidos das palavras, tão distraídas, 
no efémero que fica do efémero que passa; onde há sorrisos 
emboscados a dizer sorrisos que dizem risos e um céu, o meu. 
Porque não haveria, eu, de ter um céu, verde, mesmo verde, ou 
a transitória sensação de o possuir, onde, ainda, se permutam 
as carícias amorosas intemporais, sem rede, sem arnês, sem 
qualquer carta de voo e com pássaros de nomes desconhecidos? 


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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

No tempo de um espaço




Eu, à janela, em pé, como que dentro de um vidro, esgoto as palavras; 
esvaio-me em poesia, que não o é, como se fevereiro caísse com o natal 
debaixo da asa e a primavera, prometida, mas já inaugurada, ao colo. 

Aparenta ser um destino cruel, com uma insensatez grosseira, 
mas mais não é do que uma coisa muito, muito simples e primária: 
As asas da noite pairam nas minhas mãos, onde pare a lua, com as estrelas 
a encontrarem o complexo: a janela aberta; a ausência de cortinas; 
a luz muito acesa, no peito; a noite muito apagada e emboscada, na cabeça, 
o universo; a indelével ausência de sentido ou o seu fio solto na maré. 

A esta hora da noite, não há um táxi que me transporte para o lado 
do tempo, para que eu diga, num extenso e efusivo discurso: Lindo. 


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O que fica




Hoje, aprendi a voar para trás. 
Aprendi com a ria, que me paga amanhã. 
Mas, ainda não sei voar de costas, 
nem como quem nada. Nada. 
Diz-me, o voo, que é impossível, fazê-lo. 
Não sabe o voo, não o sabe ninguém, 
mas, eu tenho vivido o impossível, 
com o incumprimento da possibilidade. 


 [sobrevoo]



quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

{Face}




É fácil e comum encontrar-nos e perder-nos numa 
página em branco, consciente ou inconscientemente, 
sem ordem, sem tempo, sem razão aparente, 
seja qual for o seu formato, identidade ou cor. 
Uma página em branco é potencialmente infinita 
e, possivelmente, inexistente; tem inúmeros esconderijos, 
que ultrapassam os grandes abismos dos seus rebordos, 
ou a eventual contiguidade, efémera ou persistente, 
de outras páginas. Ali está o voo que ainda não foi visto; 
os poemas que nunca o serão; a lucidez da mentira 
e a loucura da verdade; os mananciais de todas as águas; 
incontáveis luzes; tantas e outras páginas em branco, 
como o futuro, a neve, as neblinas ou nevoeiros; todos 
os universos e os possíveis vazios e os seus interstícios. 


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