sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Sem legendas


Por ali, os gatos gostam de se enroscar por entre as silhuetas 
floridas de moliceiros e de figuras geométricas, que desconhecem. 
Ficam alerta, nessa protecção imaginária, numa realidade suportável, 
a aguardar por uma qualquer eventualidade fora do seu alcance, 
ou da acidental visita de um belo exemplar de ave, que se adeqúe 
à sua necessidade ancestral e instintiva de saciar a fome quimérica. 

Ali (ou em qualquer outro lugar), há uma eternidade, despudoradamente, 
muitos dos homens, velhos da minha idade, sentados ou de pé, 
enroscados nos casacos inquietos de inverno, de caso pensado, 
lançam os seus olhares ávidos e aflitivos sobre as mulheres, como 
se estas fossem presas, meras mercadorias, ou, propositadamente, 
aves, adequadas ao cortejo do apetite sexual, o seu único e possível. 

Observo, com pudor, com uma escuridão nocturna no olhar. Temo lançar 
um brilho indiscreto, ainda que simbólico, antes de ser, ou ter, outra alma: 
um pássaro; entre as cicatrizes da minha visão ou dos seus sobressaltos 
fugazes. Enrosco-me no poema, presa de mim mesmo. O meu retrato 
é uma linha na minha mão e guardo-a naquilo que é, vagamente, um bolso 
ou a ilusão de o ser, mas, ainda assim, um local à disposição e repetível. 


 [massivo]



2 comentários:

  1. Um poema que não precisa de legendas, de facto... pois a sua leitura leva-nos directamente para o seu âmago... quase o conseguimos visualizar... e não apenas verbalizar...
    Mais um belo pedaço de escrita, Henrique! E sempre com muita alma, transposta nela...
    Beijinhos
    Ana

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  2. Uma "triade"/trindade interessante. A aproximação gradual ao núcleo, o eu, e o seu resultado natural, entre analogias e similaridades.
    Bjks

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