terça-feira, 30 de junho de 2015

uma introdução


vale do rio cértima | portugal




(prelúdio) 

eu sei que vou perder 
eu já perdi 
mas fui feliz com o que quis 
e não quis e estou aqui 
a sublinhar e a rimar feliz com feliz 

(lento) 

as belezas das dezenas de equívocos de um poema 
do desvairo de quem o possa infundir em quem o escreve loucamente 
para que e para quem na leitura o reescreva num desígnio latente 

(andante) 

subitamente 
uma vida tenta apanhar outra vida de calças na mão 
com futilidades de amor da feira da presunção 

de visita ao mundo uma vida pode julgar como suas 
as indisciplinas dos afectos alheios 
e no mesmo acidente tomar para si todos os devaneios 

o espaço e o tempo podem baralhar as pistas 
dentro de uma impressão de vida em riste 
ou de uma solução de solidão que não é triste 

(resolvido) 

num conjunto de circunstâncias o modo actual de ser 
a fortaleza que não cabe numa premonição ou numa probabilidade 
ou na sinopse do estado de voo de uma sociedade 

sem deixar a rotunda de títulos longos ou os diminutos regressos
a cidade que me equivale no logro da linguagem
entranhando-se na lembrança da ria e da oceânica aragem 

(afectuoso) 

ah poesia pela poesia 
o prazer do bailado das palavras entre destroços 
a inocência da anatomia 
ou da alegria por detrás das cores e dos esboços 

a razão inerente e o sentimento que também faz parte 
da identidade do presente sem disputa 
da própria incerteza da arte 
e das imprevistas consequências da imaginação em luta 

(sem pressa)

as vidas em certo sentido não se arrumam em vida 
podem ficar esquecidas nos locais onde o pó se acumula 
podem alegrar-se no local que mais dói na ferida 
e terão sempre a voz sussurrante que reformula 

um gume na manhã e um hálito a futuro 
que atravessa a vertigem do abismo do espelho 
num fundo de palavras sublinhadas a vermelho 

será a circunstância de sobrevoar a vida 
de sobrevoar a ternura que queremos 
no espaço que é o tempo de tempo que não temos 

(sentido) 

uma-a-uma sem angústia adquirida na respiração 
sou a cor da cor da estação sob os dedos 
que tacteiam o odor dos medos 
e vêem  a dor da falta de visão 

tinha visitado longamente e até à exaustão 
as palavras que eram impressões digitais sem segredos 
as palavras que testemunhavam os enredos 
mas eram outras as razões sentimentais da solidão 

uma vida é mais do que um metro de paisagem 
não é a má intenção de dar a tristeza apertada 
a quem nos castiga com a máquina da dúvida cismada 

o amor não é uma vingança jurada 
a sua pele reconhece a ambição da mensagem 
a excitação do vazio e o vazio da viagem 

(tranquilo) 

eu vi mas não te contei 
o dia barricou-se à conversa em direcção incerta 
e o tempo e o espaço perderam os sentidos de alerta 

é o tempo que me perde na ferrugem das conjecturas 
dos seus beijos que trilham a paridade das estruturas 

(devagar) 

não sei como explicar esta estridência 
a propriedade do movimento que nos atrai 
nas costas do movimento que nos afasta enquanto vai 
na mortalidade que compõe a nossa existência 

comparável a esta serra só mesmo o mar e a urgência 
onde a minha desordem procura a salvação que se distrai 
aquele processo de pó a cair que nunca cai 
carência que finta todos os resquícios de ciência 

depois tenho os rios que adquirem pontes 
que unem as tristezas as dores as felicidades 
que se debatem com a vida e as universalidades 

é a essência a tentar fazer sentido nos sentidos 
a solidão a escrever cartas à razão onde estou agora 
na vida palpável no abstracto da hora 

(presteza) 

a vida pede um desenvolvimento 
quando não sabemos descrever o coração e a vertigem 
que é viver o horizonte sem ter abandonado a origem 

o limbo que é ter mais eu ou menos eu 
que incita à procura de todos os silêncios em todas as palavras 
e de todas as palavras em todos os silêncios da lavras 

(saudoso) 

avanço de capítulo em capítulo 
por vezes em filigranas de recordações tão minhas 
tão puídas mas que afasto gentilmente sem emenda das ladainhas 

contudo o maior lugar do dia é o presente 
a vida despida que avança na possibilidade da direcção 
por vezes construída e confidente 
muitas vezes na catástase que é não ter conclusão… 




 [livro aberto]




quarta-feira, 24 de junho de 2015

de visita ao mundo


praia da barra | gafanha da nazaré | ílhavo | portugal [a partir do forte da barra | aveiro]




(silêncio) 

passa da meia-noite 
já não sou uma abóbora 
intensifica-se o galope do sangue 
cresce a saliva 
e as palavras sublinham-me algumas partes do corpo 
de que gostam 
enquanto a noite dele emana para me ler 
e para dissolver a minha sombra 

crescem os monossílabos da insónia 
na fundamentação da deposição da disposição emocional 
sou eu a visitar o mundo 
a joaninha partiu e creio que nunca mais voltou 

(intervalo) 

é dia 
pergunto-me se saberei escrever ainda 
se saberei respirar caminhar viver 
se saberei esquecer e lembrar 
se saberei amar o bastante para o fazer 
se saberei o que é saber 
se para ser amo o suficiente 

(interrupção) 

é dia 
chegou o verão que acendeu os azuis do céu 
daqui até ao outro lado do oceano 
em redor da memória e da sensação da manhã 
a consciência elíptica do universo 
em areais construídos pelas gaivotas 
em fuga para o meu peito 
beije-me a vida ou beije-me a morte 

(inspirar e expirar profundamente) 

eu descobri ou encontrei a vida secreta das pedras 
e passei dias a admirar a arquitectura dos alicerces 
onde as palavras se cimentaram tão cuidadosamente 
que quase esqueceram o tempo e o sabor da luz 
na imobilidade dos seus gestos e essência 

(silêncio) 

fecho os meus olhos para te puder ver 
é o desassossego que me alimenta e sustem 
que me apela à vida e me acorda 
numa tempestade de sonhos e de contornos 
no murmúrio do céu das nuvens 
do rio que desagua na ria 
que como que desagua no mar 
nos redemoinhos de aveiro 
que me procuram o corpo e a imaginação 

(intervalo) 

há um primeiro café que continua a resistência 
há uma memória anterior aos primeiros gatafunhos 
de manhãs sorridentes e musicais 
de noites com estrelas cadentes 
para que eu pedisse um desejo 
onde agora é tarde e só a lembrança alcança 
a partir de julho onde me encontro a afagar a mente 
a distrair o corpo e a empalear a esperança 
na consciência poética das cicatrizes 
onde há uma memória onde ficaram factos memórias afectos 
que não poderiam prever o espaço e o tempo 
que não poderiam viajar de facto de outra forma 
e há um espelho que me devolve o rosto o amor 
a vida o chão o ar o fogo a água de quase meio século 
ao levantar os olhos no último trago de café 

(curto intervalo) 

pundonor talvez ainda me murmure ou escreva a pedir 
contas do que fui do que não fui do que perdeu e do que perdi 
do que poderia ter sido do que não sou 

(silêncio) 

aveiro foi possivelmente o abraço que me dei 
faz do meu desejo uma cidade e uma comoção 
onde o amor tudo é mas onde não vale tudo 
onde também há horas mortas solidão aparente 
silêncio sorridente que rima mima abraça 
numa praça de dias cheios de corpo que se levanta 
cedo que regressa tarde depois de enfrentar as ruas 
de enfrentar intelectos que se extraviam em personagens extremas 

há manhãs tardes crepúsculos noites dias 
que chegam sem versos 
que possam devolver o eco das carícias
mesmo das mais acesas ou de natureza certa cadente doce 
e outros há que transbordam de poesias 
de abraços sem abraçar de beijos sem beijar 
de ver sem ter visto e memorar sem ter vivido 
sou eu a visitar-te… 



 [livro aberto]




quinta-feira, 18 de junho de 2015

de vida


castelo de vide | portugal
[castelo de vide | portugal] 




o amanhã, no amanhã de ontem, 
é o amanhã de amanhã 
e, num abraço esclarecido, 
de quem chega como quem parte, 
o amanhã não é mais do que: agora. 

nada foi prometido simples. 
não sei se a minha simplicidade é um cais, 
sei que caio, mas o meu tombo é um voo. 
e nesse voo não saberei com quantas palavras posso 
dizer que gosto de ti. sei que amo com quantos gestos 
de carinho te posso amparar. esse é o destino… 



 [livro aberto]



  

quarta-feira, 17 de junho de 2015

estado


[aveiro | portugal]   




avança mais um capítulo, 
de rascunho em rascunho, 
acrescentando ou saltando páginas, 
num amontoar de enganos. 

levantar nunca depois das sete horas. 
eventualmente, cortar a barba; 
tomar um duche, rápido, sem falta. 
conduzir sem enganos e sem recordações; 
retomar o trabalho e esquecer o dia, 
sem tempo para sombras ou fantasmas, 
que se amalgamam no possível nevoeiro 
ou neblina e, seguramente, na noite, 
que surge para que, mais tarde ou mais cedo, 
eu possa regressar a casa, onde, 
continuam os ofícios e as horas ardem. 

um poema ajustado já não tem lugar 
para estes ossos, morre sem ter nascido 
onde, por fim, já não cabe a poesia, 
e em dias sempre iguais… 



 [livro aberto]


  

terça-feira, 16 de junho de 2015

títulos longos ou os diminutos


canal central | ria de aveiro | aveiro | portugal




assim como não nos servem certos dias, 
certos ventos, certas chuvas, certos calores…
e, também, não nos servem certos amores, 
podem não te servir certas palavras, arredias; 

certos versos, certos poemas, certas simpatias; 
ou certas páginas deste livro aberto às dores, 
que podem ser felizes e de outros valores, 
próximos do encantamento mágico das harmonias. 

nem todos os dias somos iguais ao princípio da memória, 
quando a manhã nos encontra espalhados pelo quarto, 
no momento imediatamente antes de juntarmos as peças. 

nem todos habitam nas paredes num momento de glória 
e o amor pode não ser a amalgama de sentimentos em parto. 
eu sou feliz [de certa forma], mesmo quando tudo está às avessas… 



 [livro aberto]



quinta-feira, 4 de junho de 2015

inerente






ah 
como me doem as costas 
de tanto transportar a poesia 
como sou criança 
como está esclarecido o junho 

não vim para explicar de onde procedem 
as sombras que dão espiritualidade ao amor 
e todas as significâncias deste e daquele 
e do excluído de todas a suas minudências 

e saberás que também neste dia 
te desejei um dia feliz 
que também neste dia nos sonhei 
num momento sentido e radiante 

e saberás que estava ao teu lado 
num aconchego protector silencioso 
e numa melodia de arrepios invisíveis… 






 [livro aberto]




terça-feira, 2 de junho de 2015

em vida


setúbal, a partir de palmela, portugal




um rouxinol acorda-me de madrugada 
já afinou toda a sua típica variedade 
de trinados e assobios e gorgolejos 
alegra-me embora eu fique ensonado 

estou a olhar para o horizonte 
do mar e para o escrito à mão 
sem questionar sobre qual será 
o mais real ou o passado 

compreendo muitas das suas diferenças 
e aceito uma profusão de outras 
e ainda outras intangíveis 
mas que podem ou não existir 
nem que seja num fundo de esperança 
ou num profundo suspiro abandonado 

gostaria que pudesses cheirar o poema 
não tem nem tenho mais do que o afecto 
e as mesmas palavras 
demorada e lentamente 
num princípio da recordação 
atrás das árvores da saudade 
ou envoltos numa onda de mar abismado 

não me apetece litigar 
não refuto 
não quero corrigir qualquer amor 
mesmo ao chegar com um fim anunciado 

quero simplesmente ser 
depois disso só isso eu fui 
um ser humano que mictou e obrou 
e que voo tão livremente 
quanto a imaginação lho permitiu 
e por vezes em vida e apaixonado… 




 [livro aberto]